O fato de o juiz ter de assumir a exclusividade da inquirição das testemunhas devido à ausência do promotor na audiência não anula automaticamente o processo criminal. Afinal, os artigos 201 e 203 do Código de Processo Penal obrigam o julgador a ouvir vítimas e testemunhas para formar a sua convicção.
Com este entendimento, o 4º Grupo Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul rejeitouEmbargos Infringentes opostos contra Apelação que, por maioria, manteve sentença condenatória que tramitou na comarca de Uruguaiana.
Os Embargos foram ajuizados pela defesa do réu, condenado por roubo, para fazer prevalecer o entendimento de que o juiz de origem atuou como acusador e julgador ao mesmo tempo, ferindo a imparcialidade e a isenção do processo penal.
Os integrantes do Grupo formado por desembargadores da 7ª e da 8ª Câmaras Criminais entenderam que o juiz, na falta do agente acusador, tem de fazer o que for indispensável para o julgamento do processo, na busca pela verdade dos fatos.
A relatora do recurso no Grupo, desembargadora Isabel de Borba Lucas, ainda lembrou que a nulidade prevista no artigo 564, inciso III, alínea ‘d’, do CPP, é relativa e foi considerada sanada. É que a irregularidade não foi arguida em tempo oportuno, como prevê o artigo 572 do mesmo diploma legal. ‘‘E foi o que aconteceu, na espécie’’, resumiu no acórdão, lavrado na sessão do dia 25 de outubro.
O caso
O fato criminoso aconteceu às 18h40 do dia 9 de abril de 2007, no interior do Bazar Diverse, em Uruguaiana. De acordo com o Ministério Público estadual, Alexandre Antunes Gomes e um sujeito ainda não identificado chegaram ao local de moto e, de arma em punho, anunciaram o assalto. Depois de render a dona do estabelecimento e uma cliente, a dupla levou dinheiro e pertences, avaliados em R$ 1 mil.
Em face do ocorrido, Alexandre foi denunciado pela prática de roubo mediante grave ameaça. O delito está previsto no artigo 157, parágrafo 2º, incisos I e II, na e no artigo 70, ambos do Código Penal.
A sentença
Em vista da ausência do promotor à audiência de instrução, o juiz de Direito Ricardo Petry Andrade conduziu os depoimentos, tomando a iniciativa probatória. Tal iniciativa, porém, fez com que a defesa do acusado sustentasse, em sede de preliminar, a nulidade do processo, já que a instrução teria sido feita em desacordo com o disposto no artigo 212 do Código de Processo Penal. O dispositivo determina que a oitiva das testemunhas deve ocorrer com perguntas feitas direta e primeiramente pelo Ministério Público e, depois, pela defesa.
O juiz explicou, na sentença, que na nova redação dada pela Lei 11.690/2008 ao artigo 212 do CPP, ‘‘as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha’’. Portanto, desaparece a intermediação que antes competia ao juiz. No entanto, segundo a norma do parágrafo único desse artigo, destacou, o juiz pode complementar a inquirição, notadamente sobre os pontos não esclarecidos.
Citando doutrinadores do Direito Penal, o juiz afirmou que não houve alteração substancial do modelo no artigo 212 do CPP, uma vez que é o juiz quem começa ouvindo a testemunha, ainda que inquirida pelas partes. Além disso, a defesa não apontou o efetivo dano causado pelo fato de o juiz ter iniciado as perguntas.
No mérito, o juiz condenou o acusado — que registrava cinco condenações criminais transitadas em julgado — na forma da denúncia, já que não teve dúvidas quanto à autoria e materialidade do delito. A pena: sete anos e seis meses de reclusão, em regime semiaberto; e pagamento de 15 dias-multa no valor de um trigésimo do maior salário-mínimo mensal vigente ao tempo do fato.
A Apelação
A defesa apelou ao TJ-RS. Na questão preliminar, argumentou que a ausência do representante do Ministério Público na audiência de instrução e julgamento leva à desconsideração da prova oral.
O relator do recurso, desembargador José Conrado Kurtz de Souza, acolheu o argumento, por entender que a figura do magistrado não pode acumular as funções de produzir a prova e, psiquicamente vinculado à iniciativa acusatória, julgar o réu.
‘‘Com efeito, quando o Ministério Público se ausenta de todos os atos processuais, no presente caso o único realizado, onde foi colhida a prova testemunhal acusatória — oitiva da vítima e testemunhas de acusação —, outra coisa não se tem senão a direta e exclusiva iniciativa probatória/acusatória pelo próprio magistrado’’, afirmou.
Para o relator, no atual estágio de amadurecimento do constitucionalismo e da ciência processual penal no Brasil, não se pode admitir que o juiz tome a iniciativa de formular todas as perguntas à vítima e, eventualmente, às demais testemunhas de acusação.
O entendimento de Kurtz, no entanto, não foi referendado pelos demais integrantes da 7ª Câmara Criminal presentes à sessão, desembargadores Carlos Alberto Etcheverry e Laura Louzada Jaccottet.
Etcheverry afirmou que a ausência injustificada do representante do MP à audiência pode configurar descumprimento de dever funcional — matéria fora dos autos —, mas não tem o dom de levar à anulação do processo. Citando as disposições do artigo 201 do CPP, disse que se o ‘‘ofendido’’ não tivesse sido arrolado por qualquer das partes, caberia ao juiz determinar que comparecesse à audiência de instrução e julgamento, qualificando-o e fazendo-lhe obrigatoriamente as perguntas elencadas no dispositivo legal.
O desembargador ainda citou o artigo 203: ‘‘A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado (...) e relatar o que souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade’’.
Conforme Etcheverry, o juiz é destinatário da prova, cabendo-lhe, se persistir alguma dúvida do relato inicial feito pelas testemunhas — ao qual eventualmente irão se somar as respostas às perguntas formuladas pelas partes — complementar a inquirição, como autoriza o parágrafo único do artigo 212 do CPP.
‘‘Que a resposta às perguntas complementares, em casos como o dos autos, pudesse vir em prejuízo do réu é juridicamente irrelevante, pois entender o contrário implicaria que essa complementação da inquirição, em todo e qualquer caso, somente poderia ser feita se as respostas jamais viessem em prejuízo do acusado, o que é indiscutivelmente um absurdo. Afinal, o que restaria perguntar? Opiniões sobre temas atuais, quais os hobbies da testemunha ou suas preferências em literatura?’’, provocou.
A decisão do colegiado levou a defesa do denunciado a interpor Embargos Infringentes no 4º Grupo Criminal do TJ-RS, pedindo a prevalência do voto do desembargador José Conrado Kurtz de Souza.
Fonte: Consultor Jurídico